9
João
O chefe acordou de mau humor e anda num frenesim louco pelo escritório, a barafustar com tudo o que mexe. Ou as coisas em casa não andam bem ou é só desejo de mais dinheiro. É o costume: uns dias sem perspectivas de casos novos e ele entra em modo "animal selvagem". Estou ao telefone com um cliente há nem sei quanto tempo. Meia hora, talvez, não sei. Sei que é há demasiado tempo, disso tenho a certeza, pois ele já repetiu a mesma informação várias vezes e não há meio de terminar a chamada. Ouço um toque leve na porta e a Mariana entra-me no gabinete. Pisco-lhe o olho e aponto para o telefone, fazendo um esgar de sofrimento. Ela sorri e deita a língua de fora. Senta-se na cadeira em frente à minha e espera até eu finalmente conseguir acabar aquele massacre.
- Olá, Mar. - cumprimentei, enquanto ela se inclinava sobre a secretária para me dar dois beijinhos.
- Olá, bom dia! Manhã difícil? - brincou.
- É aquele cliente da THC-Box...
- Ui, boa sorte com ele.
- Então? O que me queres?
- O Jaime ligou-me a dizer que quer marcar uma saída para amanhã e pediu-me para tratar de combinar tudo contigo, já que ele não pode.
- Sim, falei-lhe nisso. Onde sugeres que marquemos?
- Pensei naquele de fondue, porque já não vamos lá há imenso tempo. Isto se concordares, claro.
- Excelente ideia. Marcas tu ou marco eu?
- Eu marco. - prontificou-se. - Somos quantos?
- Faz as contas...- desvio-me. Sei perfeitamente onde ela quer chegar, mas decido não lhe facilitar a vida. Vai ser muito mais divertido.
- Ora, eu, o Jaime, a Madalena, o Tiago, a Joana, tu... - começa ela.
Impressionante a rapidez com que o assunto da chamada para Londres fez ricochete e voltou para cá.
- Sim... - faço render, rindo-me por dentro.
- E... estava a pensar em convidar a Camila. Importas-te?
- Mariana...
- Oh, está bem, já sei que até foste tu a sugerir ao Jaime que ela fosse. Ele contou-me. Pronto, já disse!
- Mar...
- Fiquei feliz, a sério! Não que esteja a pressionar, nem nada, é só que...
- Mar! - impus-me.
- Diz!
- Acalma-te um instante. Fui eu que sugeri, sim. Lembrei-me que podíamos sair e achei que ela podia juntar-se a nós. Foi isso.
- Sim.
- Só isso, Mariana.
- Pois, sim, até parece que não te conheço: para te lembrares de a incluir na saída é porque ela mexeu contigo. Não te faltam mulheres com quem sair!
- Verdade.
- A parte de ela mexer contigo ou a de não te faltarem mulheres? - puxou ela.
- Hum...
- Responde-me, vá! - provocou.
- Ambas. Ambas são verdade, mas não faças filmes, por favor.
- A das mulheres eu sabia...a da Camila desconfiava! - admitiu com um sorriso.
- É só para a conhecer melhor. Podemos ser bons amigos...como nós os dois, por exemplo.
- Poupa-me! Sou a namorada do teu melhor amigo, somos bons amigos mas nunca nos vimos com outros olhos. Diz-me que queres que a Camila vá porque queres ser amigo dela, diz!
- Neste momento, sim.
- Poupa-me, João Dinis! Tudo bem, ia dar-te umas dicas, mas se é só pela amizade nem vale a pena...
- Que dicas? - puxei, tentando soar desinteressado.
- Nada. Nadinha, mesmo. Não é para serem amigos?
- Não sejas má, diz lá o que ias dizer.
- Marcas tu?
- Mariana, vá lá...
- O que queres?
- Que dicas me ias dar?
- Não importa.
- Ela vai? - descaí-me.
- Que interessado que estás! - atirou ela, enquanto se levantava da cadeira. O sorriso dela era de pura felicidade.
- Senta-te! - saiu-me, numa voz autoritária. Ela obedeceu.
- Que agressivo!
- Não sou nada, e sabes disso. Achei muita piada à Camila, foi isso...
- Piada? - ela estava decididíssima a puxar por mim.
- Céus, Mariana, - brinquei - não sei como o Jaime te atura!
- Desenvolve lá isso.
- Não sei como ele te atura - comecei - porque tu...
- Pára! Não era isso que queria que desenvolvesses, como é óbvio. Era a parte de achares piada à Camila.
- Ah, entendi mal... - sorri-lhe.
- Continuo à espera.
- Não sei como ele te atura - comecei - porque tu...
- Pára! Não era isso que queria que desenvolvesses, como é óbvio. Era a parte de achares piada à Camila.
- Ah, entendi mal... - sorri-lhe.
- Continuo à espera.
- Piada, achei-lhe piada. Achei-a gira, simpática e pareceu-me inteligente.
- Muito.
- Com sentido de humor...
- Fantástico.
- Pronto, é isso.
- E por isso queres ser amigo dela.
- É.
- Continuas a bater nessa tecla?
- Que queres que te diga? "Olha, Mariana, leva a tua amiga ao jantar porque tem-me apetecido levá-la para a cama e quero tratar disso!" Serve?
Ela emudeceu.
- É que nem sequer é nada disso. - continuei. - Quero mesmo conhecê-la melhor.
- Já estou satisfeita com a resposta.
- Pronto, agora amuaste.
- Não amuei nada! Não queres levá-la para a cama e isso sossegou-me.
- Óptimo.
- Não que acredite.
- Desisto. - rendi-me. - Ficarias surpreendida se soubesses há quanto tempo não levo uma mulher para casa só porque sim.
- Nem quero saber, só queria perceber bem as tuas intenções. Tenho um sentido protector em relação a ela e isso não é crime. Se fosse com outra amiga qualquer até ta embrulhava e deitava na cama, mas com a Camila é diferente.
- Porquê?
- Porque sim. Tenho de ir trabalhar, que o chefe está muito mal-disposto, hoje. Vou ligar para o restaurante e avisar o pessoal.
- Ok.
- Até logo! - atirou-me, ao bater com a porta.
Fiquei a pensar no que ela disse, especialmente no facto de Camila ser especial. Também tenho essa impressão, mas não me parece que a Mariana se estivesse a referir ao mesmo que eu. Primeiro o Jaime diz-me para ir com calma, agora a Mariana diz-me que a Camila é diferente. "Diferente"?Paranóias de amigos, provavelmente. A Mariana é naturalmente protectora com os amigos todos, apesar de dizer o contrário, e com a melhor amiga deve ser ainda pior. Novo toque na porta.
-Entre!
O rosto de Mariana aparece a espreitar.
- Olha, acabei de falar com o Jaime. Amanhã ele vai ter um horário difícil e vou ter com ele ao hospital mal saia. Podes levar a Camila para o jantar?
- O que tem a ver o horário do Jaime com o facto de ires ter com ele antes de jantar?
- Não compliques. Podes ou não?
- Claro que posso, só não percebo a ligação, mas tudo bem. A que horas?
- Óptimo. Eu trato de combinar tudo. Aguarda instruções minhas!
Ri-me com vontade.
-Sim, chefe! Estou para ver que plano maquiavélico terás em mente.
O resto do dia passou sem grandes sobressaltos e fugi para casa assim que pude. A semana no escritório estava a ser intensa e ainda faltava a sexta-feira, o último dia da semana, mas nem por isso o mais fácil de esfolar. Valia-me que as horas até à saída de grupo estavam em decrescendo.