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João

O fim-de-semana passou sem que eu percebesse e quando caio em mim, hoje, metade da semana voou não sei para onde.
É quarta-feira, são seis e meia da tarde e estou muito cansado, mas com uma sensação de alívio gigantesca: a reunião com os clientes importantes correu muitíssimo bem e o chefe está feliz. Ora, se ele está feliz, eu estou feliz, pois quando ele está maldisposto fica um rabugento impossível de aturar, o que tem implicações directas na forma como corre o meu dia de trabalho.
Estou sentado no meu escritório, em silêncio, a descomprimir. Olho lá para fora e já está de noite, como é natural para este início de Novembro. O frio chegou com força e as pessoas lá em baixo andam enroladas em toda a espécie de casacos e cachecóis para se protegerem dele. A vista daqui é magnífica e é uma das coisas de que mais gosto no escritório: consigo ver uma boa parte da cidade, abaixo de mim, prostrada de joelhos perante este imponente oitavo andar em que me encontro.
Trabalho aqui como advogado há cerca de quatro anos e gosto do que faço. Quando escolhi enveredar pela área do Direito, fi-lo impelido por um fervoroso desejo de justiça e por uma vontade quase infantil de mudar o mundo. Entretanto, quando comecei a exercer, não foram raras as vezes em que a minha personalidade se revelou um entrave, em casos de divórcio, por exemplo, pela dificuldade que tinha em não sentir as dores das histórias pessoais dos clientes, mais ainda quando havia filhos metidos na avalanche de roupa suja. Frustrado por tudo aquilo que via acontecer e, pior, por certas coisas que eu próprio tive de fazer, apercebi-me rapidamente de que nunca seria bom a lidar com problemas familiares, divórcios, guardas partilhadas, lares destroçados e pensões de alimentos. Tinha de arranjar uma área do Direito que fosse menos humana, por assim, dizer, e que me permitisse trabalhar mais com o coração desligado e a cabeça no sítio. Foi assim que a especialidade da fiscalidade se me afigurou como uma opção aliciante, já que cumpria os requisitos todos, com o bónus de eu sempre ter gostado de números. Não é que agora não lide com problemas de pessoas, é claro que lido, é inevitável, mas nos casos com que trabalho são os números que falam mais alto, são eles o centro das atenções, e não os sentimentos de um miúdo de oito anos que vê o pais insultarem-se e mentirem na justiça para ficarem com a guarda dele. No caso dos números é diferente: consigo focar-me neles como coisas sem vida e virá-los de todos os ângulos possíveis sem me condoer. Faço deles o que é preciso ser feito.
Muito provavelmente, esta dificuldade em lidar com casos de divórcio tem a ver com alguma reminiscência da minha própria família, que se desmoronou há uns anos quando o meu pai saiu de casa para aceitar um emprego na embaixada no Canadá.
A partir daí, as vindas a casa foram rareando cada vez mais, até quase terem deixado de acontecer, sempre justificadas com desculpas de reuniões importantes, encontros inadiáveis e compromissos solenes. A ida dele não foi a razão pela qual o casamento deles acabou, que nunca acreditei que fosse. Para mim, foi só aquilo que fechou finalmente esse capítulo, a pedra sepulcral que o abafou definitivamente. Acho que ambos ficaram aliviados por já não terem de manter um casamento que de casamento já só tinha o nome. De certeza que, consciente ou inconscientemente, foi daí que me ficou esta repulsa por tudo o que diga respeito a estes processos.
Recosto-me na cadeira preta e o encosto cede um pouco, deixando-me demasiadamente confortável. A imagem de Camila assalta-me o pensamento e nesse preciso momento o chefe entra-me de rompante no gabinete. Maneiras, que é bom, não as há.
- João, que reunião fantástica! - felicitou-me.
- Sim, - respondi-lhe enquanto me endireitava na cadeira - correu mesmo muito bem.
- Estou a ver uns milhares largos de euros a entrarem aqui na sociedade e em parte é graças a si. Preparou-se muitíssimo bem e não falhou em nada. A continuar por este caminho, um dia destes chega a sócio, ouça o que lhe digo! - rematou, ao mesmo tempo que fechava a porta que segundos antes tinha escancarado.
Fiquei com a palavra "sócio" a ecoar na cabeça e não gostei do que senti. Não me vejo como sócio desta empresa, com cifrões nos olhos e uma avidez desmedida. Não, nem pensar. Não é esse o caminho que quero seguir. Não sei bem qual é, mas sei que não passar por tornar-me sócio disto.
A imagem da Camila vem-me novamente à cabeça. Acho que não vou conseguir seguir o plano de manter o Jaime na ignorância; afinal, preciso que ele me dê o número, pois pedi-lo à Mariana seria uma catástrofe. Tenho uma alternativa: tento marcar um jantar de grupo a que ela também vá e peço-lho a ela directamente. É isso! Acho que o Jaime só volta de Londres amanhã à noite, mas isso até serve como pretexto para nos juntarmos na sexta. Vou ligar-lhe e tentar marcar, ele deve alinhar e fica o caso resolvido. Depois é só a Camila aceitar o convite para se juntar a nós e eu trato do resto. Levanto-me da cadeira e marco o número do Jaime no telemóvel. Enquanto a chamada se perde pelos dois mil quilómetros que nos separam, olho novamente para a rua: está uma chuva miúda a convidar-me para ir para casa relaxar.


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