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Camila


Hoje acordei com vontade de ser o Huckleberry Finn: queria desencaminhar um bom amigo e faltar às obrigações todas para ficar no topo de uma árvore a ver o Mississipi passar. Traduzindo isto para os dias atarefados que correm, significa que quero estar com a Mariana e mais gente à nossa volta, para conversarmos e bebermos até a noite ir embora de mansinho.
Hoje tenho vontade de sair, coisa que para muitos é algo normal. Não para mim, e não depois do período negro pelo qual passei. A Mariana diz muitas vezes que sou uma mulher corajosa. Pensando bem, até sou. Tive a coragem de terminar uma relação que não me servia (quantos a têm?) e encontrei a força para enfrentar as consequências inesperadas que daí advieram. Tive a cabeça fria o suficiente para ter conseguido sair com a minha integridade física intacta, apesar de ameaçada. Acabaram os pesadelos e aquela falta de ar incapacitante que me sufocava quando me lembrava do episódio. Acho que a palavra "episódio" talvez não seja a mais certa para descrever o que se passou, já que me lembra uma série ou uma novela, e aquilo foi real, bem real. Por outro lado, parece algo saído da cabeça de um argumentista bêbedo de Hollywood, pela falta de originalidade e pelo facto de já termos visto cenas semelhantes em vários filmes diferentes, pelo que a palavra "episódio" se adequa muitíssimo bem. Provavelmente foi aí que ele se inspirou, num qualquer filme que viu. De qualquer forma, sinto-me num sítio melhor, agora que já passaram uns meses: já me é muito menos doloroso lembrar o que se passou e já não olho por cima do ombro de cada vez que ouço alguém aproximar-se de mim na rua. O trabalho está numa fase óptima, com traduções para três empresas diferentes, o que me permite ter um ordenado simpático e poucas dores de cabeça. Agradam-me particularmente os romances que traduzo pontualmente, pois ajudam-me a sair do tédio dos pesados manuais de máquinas e equipamentos que traduzo mais frequentemente. 
Esforço-me bastante para ter o meu armário mental organizado quanto baste, e, neste momento, tenho as prateleiras arrumadas e catalogadas por cores e tamanhos e as coisas que as habitam alinhadas por ordem alfabética. Sim, confesso que sou ligeiramente maníaca e que penso demasiado, mas sempre que tento não pensar demasiado, penso demasiado nisso, e no facto de pensar demasiado, e penso demasiado novamente. Uma confusão, não é? De qualquer forma, posso dizer que está tudo no caminho que defini, ou melhor, quase tudo. A prateleira das relações não está em muito bom estado. Tem algumas teias de aranha e restos partidos de coisas antigas que já não me servem. Já nem falo da inexistência de namorado, pois essa justifica-se bem pelo trauma que passei em Fevereiro. Falo mesmo dos amigos, dos quais me afastei progressivamente. É difícil sair de casa quando só temos vontade de nos trancarmos nos quarto, em suposta segurança. A Mariana tem estado nessa prateleira, a um canto, meio esquecida, mas faço questão de voltar a dar-lhe o valor que merece. Ajudou-me de uma forma fantástica e fez de tudo para que eu ultrapassasse as coisas da forma mais rápida e indolor possível, e acho que resultou. Hoje fui eu que lhe liguei para combinarmos uma saída, para a desencaminhar comigo para a diversão. É pena que já tivesse coisas marcadas com o Jaime e os amigos dele, mas convidou-me para me juntar a eles. Noutra altura qualquer teria dado uma desculpa e recusado, mas hoje aceitei. Afinal, é sexta-feira, já enviei o trabalho cujo prazo terminava amanhã e bem preciso de beber um copo e descontrair. Hoje fecha-se o ciclo da prateleira vazia e abre-se o ciclo da futura prateleira cheia.

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