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João

Estranhamente não me custou acordar nem sair da cama. Dormi bem e acho que terminaram os pesadelos. Era recorrente: o dia do meu casamento, eu felicíssimo e, quando levantava o véu da noiva, eras tu. A euforia a dar lugar ao terror, os calafrios a despertar-me a meio da noite. Eram um sinal do subconsciente daquilo que teimava em não querer ver, não era? Acabaram de vez. Faz um mês que saíste, que dissemos tudo, que fechamos a porta de forma definitiva. Foram pouco mais de três meses contigo (seriam mesmo contigo?), nem bons nem maus. Agora, que penso nisso, não foram frios nem quentes, nem pretos nem brancos, antes de um cinza monótono de habituação. Nunca foi amor, isso é certo, mas não sei ao certo o que foi. Também não foi paixão, não daquelas sérias, verdadeiras, que nos consomem por dentro enquanto nos iluminam por fora. Houve, sim, uma atracção inicial, logo resolvida em meia dúzia de sessões entre os aborrecidos lençóis. O resto foi algo que nem sei definir e não sei porque durou tanto tempo. Sim, três meses podem ser muito tempo, e estes foram sem dúvida uma eternidade, mas não no bom sentido. Dava era muito trabalho acabar com tudo, penso que foi isso. Arranjar palavras, preparar-me para uma possível esgrima de argumentos e algumas eventuais lágrimas tuas era algo que se me afigurava uma tarefa evitável. “Deixa andar, vamos ver no que dá”, dizia-me o cérebro, “pode ser que surja algo especial”. O coração, esse sabia que não ia dar em porra nenhuma de jeito, que quando as coisas têm de ser especiais dão logo indícios disso algures no começo. Sabia perfeitamente que aquilo que tínhamos não éramos “nós”, nunca chegou sequer a isso. Era só um eu e um tu, uma equação estranha, sem sentido, uma soma forçada em que o resultado conseguia ser menor do que as partes isoladas. Sim, foste um objecto decorativo de luxo que levei comigo a dois ou três jantares aborrecidos e que me conseguiu inúmeros olhares de inveja masculina que me incharam temporariamente o ego. Sim, fazias os homens virar a cabeça onde quer que fôssemos (e ainda fomos a alguns sítios), mas a mim não me enchias as medidas. Caías-me estranha, larga, cerimoniosa e artificial como uma roupa de gala emprestada que nos sobra em tamanho e em presunção. Ainda bem que entretanto me fiz corajoso e te disse que já não dava, que, de facto, nunca tinha dado e que tinha sido um erro. Não ficaste muito chateada nem surpreendida, ou então foi só para tentares não estragar a maquilhagem impecável que trazias, como sempre. Disseste um cordial “sê feliz” e fechaste a porta devagar atrás de ti. Simples assim. Saíste da minha vida faz exactamente um mês e já me sinto mais eu, mais solto e espontâneo. É como se estivesse estado a tomar um medicamento mau e agora estivesse finalmente desintoxicado. Estou cheio de vontade para, desta vez, encontrar uma mulher a sério, saída directamente da vida real, com defeitos e fraquezas e não uma boneca caída da capa duma revista de moda internacional, com as palavras estudadas e os gestos treinados. Devia sentir remorsos, tristeza, saudade, talvez, mas só consigo sentir-me eufórico por me sentir acordado perante um mundo de possibilidades infinitas à minha frente.

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